4/19/2016

Ritual

Esse ritual costumava ser sagrado, diário e corriqueiro. Fitar a tela em branco e ali transformar em palavras sentimentos que a dominavam e impressões que atingiam em cheio. Ela fitava o teclado e via as palavras prontas nas pontas dos dedos, que corriam céleres sem tropeçar, traduzindo emoções e imagens que a despertavam de seu torpor costumeiro. 
Era um ritual, e era uma parte de si. Mas em algum momento, em alguma parte, ela se perdeu. O ritual foi quebrado. A partir de então os sentimentos ficaram trancados e as imagens foram se perdendo, sem alguém que os traduzisse, já não faziam mais sentido, e eram deixados de lado... Ela se perdeu, e um dia percebeu que estava no escuro. As palavras já não vinham, e o teclado era cheio de letras em posições aleatórias que pareciam não se encaixar... Seus dedos tropeçavam e desistiam...Calaram-se. Assim como ela se calou para o mundo. E agora ela fita aquela tela em branco novamente, sem emoções, sem imagens para serem traduzidas, e o vazio que a preenche a assusta, e o escura que a cerca a faz tremer. Mas se ela conseguir fitar a luz, a luz que a fascina, a luz daquela tela em branco, e se ela conseguir escrever uma palavra sem tropeçar, então talvez não seja tarde, talvez ainda haja esperança, talvez ela ainda consiga gritar, aquele grito rouco de uma garganta seca há muito não utilizada, aquele grito que vem de dentro, da alma, aquele grito primevo - o primeiro passo para a libertação.

C.C.

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