8/28/2010

Ninguém, nem mesmo a chuva...

Nenhum lugar em que nunca estive, alegremente

além de qualquer experiência, teus têm o silêncio;

no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,

ou que não ouso tocar porque estão demasiado perto.


Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra

embora eu tenha me fechado como dedos,

você me abre sempre pétala por pétala como a Primavera

abre (tocando sutilmente, misteriosamente) sua primeira rosa.


Ou se você quiser me ver fechado, eu e 

minha vida nos fecharemos belamente, de repente,

assim como o coração desta flor imagina

a neve cuidadosamente descendo em toda parte;


Nada que possa perceber neste universo iguala

o poder de tua imensa fragilidade:

cuja textura complete-me com a cor de seus continentes, 

constituindo a morte e o sempre cada vez que respira.

(não sei o que há em você que fecha

e abre; só uma parte de mim compreende que nas

vozes de teu olhar cabem todas as rosas)

ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas.


E.E. Cummings


C.C.

8/08/2010

Reflexos

Sentada à beira mar, o som dos pássaros marinhos ecoavam por toda parte. A serenidade em seu rosto era somente uma máscara, um disfarce que assumira sem ao menos perceber que o fizera. Haveria um lugar, algum dia, onde o por do sol pudesse finalmente significar algo mais que um refúgio?

Andara por toda a extensão da praia e sentara-se ali, ali onde o sol tocava o mar ao dar lugar à noite que se aproximava. Ali onde tantas vezes assumira o mesmo ar de serenidade enquanto tentava encontrar um abrigo, uma solução, um milagre. E seus pensamentos espalhavam-se pela praia, suas tristezas, sua luta, seu desespero, sua razão, sua esperança. Às vezes imaginava que as gaivotas davam rasantes sobre seus pensamentos, tentando pescá-los, tentando levá-los para algum lugar onde o sol ainda pudesse iluminá-los. Às vezes uma lágrima escapava, outras tantas um sorriso.

Quando se está tão focado em algo ou alguém, o mundo parece perder o sentido e não percebemos a solidão que aos poucos nos cerca. Não percebemos as horas correrem, não percebemos os dias chuvosos, não percebemos as noites de lua cheia, porque tudo, tudo, nos lembra o algo, ou o alguém. Tudo parece nos aproximar ainda mais daquilo que desejamos, como se todo o universo tivesse sido criado só para nos lembrar de sua existência.

Como as gaivotas, que a faziam lembrar do riso, ou o brilho alaranjado do sol contra o mar, que a fazia lembrar de seus olhos, ou o céu rosado, ou o barco que fazia seu caminho vagarosamente, guiado pela brisa... A brisa a fez lembrar do dia em que a tempestade caíra sem aviso sobre eles, e o vento bagunçara os cabelos negros, e de repente não havia mais nada, só os olhos dela nos dele, só...

Era como se tudo estivesse conectado e de repente, sem aviso, o fim.

Mas as gaivotas continuariam dando seus mergulhos certeiros, a brisa continuaria guiando o pequeno barco à vela, o sol continuaria se pondo, e a noite continuaria voltando. E não haveria mais "nós".

C.C.

8/02/2010

História de outra mente - Enid

Quarto Escuro

 Acordou e permaneceu deitada, encarando o teto do quarto. A madeira escura estava começando a apodrecer, provavelmente pela umidade e falta de luz.

Escuro. Ela podia sentir a vida que nascia nas ruas, podia sentir o sol infiltrando-se pelos poros do quarto frio, mas não havia luz. Levantou-se, pôs os chinelos e foi até a janela. Ela a abriria, e mesmo esperando sentir o calor do sol tocando seu rosto, sabia que só veria uma parede escura coberta por limo e sentiria o vento gelado cortando sua face. Era só o que precisava para despertar.

Inspirou o ar gélido, trocou o pijama por uma calça de couro e uma camisa impecavelmente branca. Pôs o colete preto, pegou o relógio de bolso, deu corda, e colocou-o no bolso do colete. Pôs o coldre em volta da cintura e colocou uma pistola em cada lado, pegou mais duas pistolas, menores, e escondeu dentro das botas de cano alto. Pôs o sobretudo de couro longo, o chapéu e então parou em frente à porta do quarto. Antes de sair inspirou profundamente, tocando a maçaneta. Talvez tivesse virado um hábito, ou talvez fosse realmente necessário. Enquanto inspirava, os olhos fechados, juntava forças e o que mais fosse preciso para sair, para ver o mundo, para continuar vivendo.

 Contrato

 Havia sol, ainda que fizesse frio, seus raios penetravam a cortina fina de fumaça e poluição que se estendia sobre a cidade. Enid seguiu pela rua movimentada, o rosto parcialmente escondido pelo chapéu. Havia um encontro, outro cliente, outro contrato, mais uma morte.

Já não se perguntava mais, os fantasmas pareciam estar cada vez mais quietos, presos a um passado que já não lhe dizia respeito, era só essa espécie de anestesia, como se o mundo à sua volta não fizesse parte dela, e ela não fizesse parte deste mundo.

 Sentiu o cheiro do café à distância. Sempre um café. Parecia que os cafés haviam sido criados para isso, locais onde pessoas que querem silenciar alguém encontravam pessoas dispostas a fazer o serviço. Por um preço, claro, sempre havia um preço a ser pago, sempre havia o contrato.

C.C.